UNEGRO - União de Negras e Negros Pela Igualdade. Esta organizada em de 26 estados brasileiros, e tornou-se uma referência internacional e tem cerca de mais de 12 mil filiados em todo o país. A UNEGRO DO BRASIL fundada em 14 de julho de 1988, em Salvador, por um grupo de militantes do movimento negro para articular a luta contra o racismo, a luta de classes e combater as desigualdades. Hoje, aos 33 anos de caminhada continua jovem atuante e combatente... Aqui as ações da UNEGRO RJ

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A criança negra no Brasil




As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, negros, mestiços, enfim, desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo. Não é à toa que o comércio e a indústria de produtos infantis vêm aumentando progressivamente sua participação na economia nacional; assim como a educação primária tanto quanto o combate à mortalidade infantil são permanentes temas da política nacional. O bem-estar e o aprimoramento das relações entre pais e filhos são assuntos constantes de psicólogos, sociólogos, psicanalistas, enfim, de especialistas que, além de trazerem uma contribuição inédita para a melhor inserção da criança na sociedade do ano 2000, reproduzem seus conhecimentos em revistas e teses, propondo uma nova ética para a infância.



Para cada criança branca vítima da violência urbana no Brasil, duas outras negras são mortas, alerta o Fundo para Infância e Adolescência (Unicef).


A estatística faz parte de um levantamento feito pelo braço brasileiro da agência da ONU para chamar atenção sobre a dupla fragilidade das crianças negras do país.


Usando dados do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD), a Unicef traçou um desenho sombrio de como o racismo afeta futuras gerações de brasileiros e compromete “setores-chave do desenvolvimento”, nas palavras da oficial de projetos da agência, Helena Oliveira Silva.


Segundo o PNUD, a taxa de homicídios registrada entre negros foi o dobro da registrada entre brancos no ano passado. Em 2000, de acordo com o Datasus, em média 14 adolescentes entre 15 e 18 anos morreram por dia no Brasil – destes, 70% eram negros.



O levantamento mostrou também que as crianças negras estão em pior situação na escola e no mercado de trabalho.


No mundo atual, essas mesmas crianças passaram de reis a ditadores. Muitas de suas atitudes parecem-nos incompreensíveis. Quase hostis. Uma angústia sincera transborda das interrogações que muitos de nós nos fazemos sobre o que seja a infância ou a adolescência. É como se as tradicionais cadeias de socialização tivessem, hoje, se rompido. Socialização na qual os laços de obediência, de respeito e de dependência do mundo adulto acabaram sendo trocados por uma barulhenta autonomia. Influência da televisão? Falta de autoridade dos pais? Pobreza e exclusão social de uma imensa parcela de brasileiros? Mais. E se tudo isso secretasse, nas margens da sociedade, uma brutal delinqüência juvenil, mesmo entre as famílias mais equilibradas, nas quais a presença dos pais e o excesso de amor substituem a educação, gerando um profundo mal-estar feito de incompreensão e brigas?

O lugar da criança negra na sociedade brasileira terá sido sempre o mesmo? Como terá ela passado do anonimato para a condição de cidadã, com direitos e deveres aparentemente reconhecidos? Numa sociedade desigual e vincada por transformações culturais, teremos, ao longo dos tempos, recepcionado nossas crianças da mesma forma? Sempre choramos, do mesmo jeito, a sua perda? Que marcas trazem as crianças de hoje daquelas que as antecederam no passado? Mas há, também, questões mais contundentes, tais como: por que somos insensíveis às crianças negras que mendigam nos sinais? Por que as altas taxas de mortalidade infantil, agora começando a decrescer, pouco nos interessam? As respostas, entre tantas outras, só a História pode dar. Não será a primeira vez que o saudável exercício de “olhar para trás” irá ajudar a iluminar os caminhos que agora percorremos, entendendo melhor o porquê de certas escolhas feitas por nossa sociedade.


Para começar, a história sobre a criança, feita no Brasil, assim como no resto do mundo, vem mostrando que existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, por ONGs ou autoridades e aquele no qual a criança encontra-se cotidianamente imersa. O mundo do que a “criança deveria ser” ou “ter” é diferente daquele onde ela vive ou, no mais das vezes, sobrevive. O primeiro é feito de expressões como “a criança precisa”, “ela deve”, “seria oportuno que”, “vamos nos engajar em que”, etc., até o irônico “vamos torcer para”. No segundo, as crianças são enfaticamente orientadas para o trabalho, o ensino, o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que normalmente se lhe está associada: aquela do riso e da brincadeira.

No primeiro, habita a imagem ideal da criança feliz, carregando todos os artefatos possíveis capazes de identificá-la numa sociedade de consumo: brinquedos eletrônicos e passagem para a Disneylândia. No segundo, o real, vemos se acumularem informações sobre a barbárie constantemente perpetrada contra a criança, materializadas nos números sobre o trabalho infantil, naqueles sobre a exploração sexual de crianças de ambos os sexos, no uso imundo que faz o tráfico de drogas de menores carentes, entre outros. Privilégio do Brasil? Não! Na Colômbia, os pequenos trabalham em minas de carvão; na Índia, são vendidos aos cinco ou seis anos para a indústria de tecelagem. Na Tailândia, cerca de 200.000 são roubados anualmente às suas famílias e servem à clientela doentia dos pedófilos. Na Inglaterra, os subúrbios miseráveis de Liverpool produzem os “baby killers”, crianças que matam crianças. Na África, 40% das crianças entre 7 e 14 anos trabalham.

Pensar tais questões, assim como seus antecedentes históricos, vem sendo uma preocupação geral, para especialistas ou não.


Só pra recordar:


Desde o início da colonização, as escolas jesuíticas eram poucas e, sobretudo, para poucos. Se as crianças indígenas tiveram acesso a elas, o mesmo não podemos dizer das crianças negras, embora saibamos que alguns escravos aprendiam a ler e escrever com os padres2. O ensino público só foi instalado, e ainda assim mesmo de forma precária, durante o governo do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. Os cuidados com a evasão, com o ensino da religião cristã, das “obrigações civis” ou dos chamados “Estudos Maiores” não cobriam, contudo, as necessidades de uma parcela importante da população: aquela constituída por filhos de forros3. Nos documentos, nem uma palavra sobre a educação de crianças negras ou de filhos de escravos, salvo a religiosa que, segundo o jesuíta Antonil, era obrigatória. Essa obrigatoriedade acabou empurrando o catolicismo para dentro dos rituais de candomblé afro-banto: “O kêrêkêrê – relampejou! Pelo Cálice e pela Hóstia!(...) Noé, Noé, Sua barca é-vem! É-vem cheia de caboco, completa ou sozinha sem mais ninguém!”4.

No século XIX, a saída para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos úteis e produtivos na lavoura, enquanto os filhos de uma pequena elite eram ensinados por professores particulares. Reclamada desde 1824, e criada em 1856 para atender às necessidades de uma população livre e vacinada, a escola pública proibia seus assentos às crianças escravas. Às pobres, provavelmente mulatas e negras, reservava espaço quando se tratavam daquelas que demonstravam “acentuada distinção e capacidade”. Examinando relatórios de mestres, lecionando em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, no final do século XIX, Alessandra Martinez de Schueler6 demonstra que, segundo esses, uma parcela diminuta de alunos era constituída por libertos “pretos”, além de um “número pequeno de cor parda”. A desigualdade social e racial inscrevia-se, portanto, nas origens do ensino público que não era para todos. Mas para alguns.

Para as crianças libertas com a Lei do Ventre Livre (28/09/1871), sobrou a perspectiva do ensino profissionalizante. Institutos privados, na sua maior parte de origem religiosa, como o do Sagrado Coração de Jesus ou o abrigo Santa Maria em São Paulo, recolhiam crianças pobres e davam-lhes um mínimo de preparo prático para ofícios manuais5. Schueler lembra ainda, num dos seus artigos, que a mesma lei previa que a educação dos “ingênuos” (termo que designava crianças de até 5 anos) fosse entregue ao governo pelos senhores. A instrução primária e o encaminhamento dos filhos livres das escravas para os ofícios manuais foram projetados no texto legal. Quando das grandes reformas urbanas que atingiram as capitais dos Estados, no final do século XIX, vozes como as de Cândido Motta, Moncorvo Filho e Bush Varella, juristas e médicos, imprecavam contra a presença crescente de crianças nas ruas – as negras eram maioria –, exigindo solução para estancar a circulação desses “desgraçados, sem teto, sem lar, sem educação, sem instrução e sem ordem”. Na República, recém-proclamada e que ostentava na bandeira o lema “Ordem e Progresso”, a infância negra prometia desordem e atraso. Na capital, Rio de Janeiro, pequenos mendigos, indigentes e vadios faziam da Praça XV, do Arco do Telles e das portas de igrejas o seu ponto de apoio.6 Quarenta anos depois, o Estado Novo criava, em 1941, o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), sistema que ajudou a criminalizar definitivamente o menor de rua7. No primeiro quartel do século XX, a população de crianças carentes tinha que defrontar-se com um binômio imposto pela sociedade burguesa: lazer versus trabalho e honestidade versus crime. Normalmente foram associadas ao trabalho e, na ausência deste, ao crime. Os rostos de crianças negras são os mais freqüentes nas imagens mostradas sobre a Febem.

No final aquele mesmo século, o trabalho infantil continua, contudo, sendo visto, pelas camadas subalternas, como “a melhor escola”. Pais pobres, com renda inferior a meio salário mínimo, exigem que seus filhos trabalhem para incrementar os rendimentos do grupo familiar. “O trabalho – explica uma mãe pobre – é uma distração para a criança. Se não estiverem trabalhando, vão inventar moda, fazer o que não presta. A criança deve trabalhar cedo.” E, pior, hoje, afogados pelo trabalho, quase 60% desses pequenos trabalhadores, no Nordeste, são analfabetos e entre eles a taxa de evasão escolar chega a 24%. No sul do País o cenário não é muito diferente. Trabalhando em lavouras domésticas ou na monocultura, as crianças interrompem seus estudos na época da colheita, demonstrando que estar inscrito numa escola primária não significa poder freqüentá-la plenamente. Assim, o trabalho, como forma de complementação salarial para famílias pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em detrimento da formação escolar. Nesse quadro, a criança negra e analfabeta tornava-se uma espécie de testemunha muda, silenciosa, de seu tempo.

Quanto à evolução da intimidade, sabemos o quanto ela sempre foi precária entre nós. Os lares mono-parentais; a mestiçagem; a pobreza material e arquitetônica, que traduzia-se em espaços onde misturavam-se, indistintamente, crianças e adultos de todas as condições; a presença de escravos, forros e libertos; a forte migração interna, capaz de alterar os equilíbrios familiares; a proliferação de cortiços, no século XIX, e de favelas, no XX, são fatores que alteravam a noção de que se pudesse ter no Brasil, até bem recentemente, privacidade, tal como ela foi concebida pela Europa urbana, burguesa e iluminista. A noção de privacidade para escravos é ainda mais complexa de ser pensada. Ela não passa pela constituição de espaços de intimidade. Passa, sim, por seu corpo. Seu território privado é o “eu”, espécie de bolha irregular e protetora, mais ou menos desenvolvida de acordo com a sua condição na sociedade. Na busca de interação ou em atitudes de rejeição, o território do eu permitia marcar um certo espaço ou violar o dos outros. A intimidade de mães e filhos, por exemplo, elaborava-se não em casa, mas na rua. Nos relatos de viajantes, demonstra Kátia Q. Mattoso,11 crioulinhos e pardinhos acompanham suas mães nas tarefas do cotidiano. Quando, muito novos para correrem pelos caminhos e pelas vias públicas, iam arrimados nas costas de suas mães, envolvidos por panos coloridos. A proximidade do seio materno, do dialeto no qual as mulheres se comunicavam, os adornos de coral e os balangandãs que usavam contra forças maléficas e até a forma como penteavam seus cabelos e o de suas crias faziam parte desse território do eu, dividido, no aconchego do colo, entre mãe e filho. A passagem da alimentação mista para a semi-sólida operava-se com infinita precaução, não percebida, todavia, pelos viajantes estrangeiros. A técnica de pré-digestão de alimentos embebidos na saliva materna significava muito mais um cuidado do que falta de higiene. Na tradição africana, era comum a mastigação de sólidos e a passagem destes, em forma de bolo cremoso, para a boquinha dos pequenos. Era habitual, também, dar de comer aos pequenos pirão de leite ou farinha seca com açúcar bruto, de manhã, leite com jerimum ou escaldado de carne no almoço. O prato de resistência era o feijão cozido, servido com farinha ou machucado à mão. Leite de cabra era considerado fortificante. Para se comunicar, as mães negras criaram uma linguagem que em muito colaborou para enternecer as relações entre o mundo infantil e o mundo adulto. Reduplicando as sílabas tônicas, pronunciavam com especial encanto: dodói, cacá, pipi, bumbum, tentém, dindinho, bimbinha. Para adormecê-los, contavam-lhes estórias de negros velhos africanos, papa-figos, boitatás e cabras-cabriolas. A cultura africana inundou o imaginário infantil com assombrações como o mão-de-cabelo, o quibungo, o xibamba, criaturas que, segundo Gilberto Freyre, rondavam casas-grandes e senzalas, aterrorizando criança malcriada.

Não poderíamos, tampouco, incorporar as teses de um epígono americano de Ariès, Lloyd de Mause, para quem a história dos pequenos seria apenas um catálogo de barbáries, maus-tratos e horrores. No que diz respeito à História do Brasil, encontramos, de fato, passagens de terrível sofrimento e violência. Mas não só. Os testamentos feitos por jovens mães, negras livres, escravas ou forras, no século XVIII, não escondem a preocupação com o destino de seus “filhinhos do coração”. Os viajantes estrangeiros não cessaram de descrever o demasiado zelo com que, numa sociedade pobre e escravista, os adultos tratavam as crianças.

Nos dias de hoje, educadores e psicólogos perguntam-se, atônitos, de onde vêm o excesso de mimos e a “falta de limites” da criança brasileira, já definida, segundo os resmungos de um europeu de passagem pelo Brasil em 1886, como “pior do que um mosquito hostil”. O excesso de mimos não era fortuito. Sabemos, graças aos estudos de antropólogos, que a recepção de uma criança na sociedade africana era fonte de imensa satisfação. Muitos dos ritos que cercavam o nascimento foram transpostos para o Brasil. Ao nascer, os pequenos de origem nagô eram untados com óleos e imersos em banhos de folhas com a finalidade de proteção. Entre os cassanjes, toda a comunidade participava do parto, não trabalhando no campo, nem tocando em instrumentos cortantes. Tão logo a criança nascia, tinha o narizinho apertado e a cabeça massageada para adquirir uma forma que parecia, às mães de origem africana, mais estética. Os umbigos eram curados com pimenta-do-reino em pó. Em fins do século XVIII, o médico francês Jean Marie Imbert registrou, entre atônito e chocado, a bulha festiva de comadres, parteiras e amigas em torno da africana que estivesse dando à luz. Nenhum gesto era destituído do mais profundo simbolismo.

O batismo, obrigatório nas senzalas, consistia num rito de purificação e de promessa de fidelidade ao credo católico, mas significava também uma forma de dar solenidade à entrada das crianças nas estruturas familiares e sociais. No caso dos filhos de escravos e libertos, os laços estabelecidos graças ao sacramento do batismo eram também étnicos e culturais.

A amamentação durava dois anos e a dentição era acompanhada com cuidado. O primeiro dentinho era festejado com farinha e caulim, símbolo da prosperidade. O lugar, mesmo dos pequenos, dentro da sociedade era de ordem ontológica. A criança era uma porta entre o presente e o passado personificado nos ancestrais. Muitas recebiam, para além de um nome cristão, aquele de um animal e de um orixá. Ao nascer, seus pais plantavam uma árvore, símbolo de seu futuro vigor e força. A passagem para o mundo adulto realizava-se através da circuncisão de meninos aos 12 ou 13 anos. No Brasil, tais ritos eram festejados nas festas de Quicumbi, nas quais os “mometos”, circuncidados com taquaras, bailavam e dançavam antes de passar, com os convivas, a um banquete. Se morriam pequenas, as crianças negras eram carregadas num tabuleiro recoberto por uma toalha de renda, e suas mães alugavam flores artificiais e coroas para cumprir o dever de enterrar condignamente seus rebentos.

Os historiadores brasileiros têm que partir de constatações bem concretas, tiradas, na maior parte das vezes, das fontes documentais com as quais trabalham e da sua observação crítica da realidade para contar sua própria história.

A primeira dessas constatações aponta para uma sociedade certamente injusta na distribuição de suas riquezas, avara no que diz respeito ao acesso à educação para todos, vincada pelas marcas do escravismo. Como fazer uma criança obedecer a um adulto, como queria a professora alemã que vai, na segunda metade do século XIX, às fazendas do Vale do Paraíba ensinar os filhos dos fazendeiros de café, quando estes distribuem ordens e gritos entre os seus escravos? E não são apenas as crianças brancas que possuem escravos. As mulatas ou negras forras, uma vez seus pais integrados ao movimento de mobilidade social que teve lugar em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, tiveram elas também seus escravos. Muitas vezes, seus próprios parentes ou até meios-irmãos! Na sociedade escravista, ao contrário do que supunha a professora alemã, criança, branca ou negra, mandava e o adulto escravo obedecia. Por vezes, em circunstâncias dramáticas.

A dicotomia dessa sociedade, dividida entre senhores e escravos, gerou outras impressionantes distorções, até hoje presentes. Tomemos o tão discutido exemplo do trabalho infantil. Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do início do século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas 1/3 sobrevivia até os 10 anos. A partir dos 4 anos, muitas delas já trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois considerava-se que seu adestramento já estava concluído e nas listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João “pastor”, Ana “mucama”, transformados em pequenas e precoces máquinas de trabalho13. Tais máquinas compravam-se a preço baixo e tinham a vantagem de prometer vida longa em funcionamento.

Trabalho ao longo da infância, sem tempo para a idéia que comumente associamos à infância, a da brincadeira e do riso, era o lema perverso da escravidão. Contudo, a mesma resistência que se lhe opunham os adultos foi transmitida à criança. Não foram poucas as que contrariaram, pela fuga, a obrigação do eito e a exploração. Freyre os acompanhou através de anúncios publicados em jornais pernambucanos e cariocas no século XIX. Eram procurados e caçados, como seus ancestrais.

Quando da abolição da escravidão, as crianças e os adolescentes moradores de antigas senzalas continuaram a trabalhar nas fazendas de cana de Pernambuco. Tinham a mesma idade de seus avós, quando estes começaram: entre 7 e 14 anos e, até hoje, ainda cortando cana, continuam despossuídas das condições básicas de alimentação, moradia, saúde, educação e garantias trabalhistas. Como no passado, o trabalho doméstico entre as meninas também é constante, constituindo-se num “outro” turno, suplementar ao que se realiza no campo. Como se não bastasse a ação de fatores econômicos a interferir na situação da criança, a ausência de uma política do Estado voltada para a formação escolar da criança pobre e desvalida só acentuou seu miserabilismo. Ora, ao longo de todo esse período, a República seguiu empurrando a criança para fora da escola, na direção do trabalho na lavoura, alegando que ela era “o melhor imigrante”.

No início do século, com a explosão do crescimento urbano em cidades como São Paulo, esses jovens dejetos do que fora o fim do escravismo encheram as ruas. Passaram a ser denominados “vagabundos”. Novidade? Mais uma vez, não. A História do Brasil tem fenômenos de longa duração. Os primeiros “vagabundos” conhecidos eram crianças brancas, recrutadas pelos portos de Portugal para trabalhar como intermediárias entre os jesuítas e as crianças indígenas ou como grumetes nas embarcações que cruzavam o Atlântico. No século XVIII, terminada a euforia da mineração, crianças vindas de lares mantidos por mulheres livres e forras perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes escusos – os nossos atuais “bicos”– e de esmolas. As primeiras estatísticas criminais elaboradas em 1900 já revelam que esses filhos da rua, chamados durante a Belle Époque de “pivettes”, eram responsáveis por furtos, “gatunagem”, vadiagem e ferimentos, tendo, na malícia e na esperteza, as principais armas de sobrevivência. Hoje, quando interrogados pelo serviço social do Estado, dizem, com suas palavras, o que já sabemos desde o início do século: a rua é um meio de vida!

A divisão da sociedade, velha divisão dos tempos da escravidão entre os que possuem e os que nada têm, só fez agravar a situação dos nossos pequenos.

Outra característica desse trabalho é que, diferentemente da história da criança, feita no estrangeiro, a nossa não se distingue daquela dos adultos. Ela é feita, pelo contrário, à sombra daquela dos adultos. No Brasil, foi entre pais, mestres, senhores e patrões que pequenos corpos tanto dobraram-se à violência, às humilhações, à força quanto foram amparados pela ternura dos sentimentos familiares os mais afetuosos. Instituições como as escolas, a Igreja, os asilos e posteriores Febens e Funabens, a legislação ou o próprio sistema econômico fizeram com que milhares de crianças se transformassem, precocemente, em gente grande. Mas não só. Foi a voz dos adultos que registrou, ou calou, sobre a existência dos pequenos, possibilitando ao historiador escrutar esse passado através de seus registros e entonações: seja através das cartas jesuíticas, relatando o esforço de catequese e normalização de crianças indígenas, ou a correspondência das autoridades coloniais sobre a vida nas ruas, pano de fundo para as crianças mulatas e escravas. Seja através das narrativas dos viajantes estrangeiros, dos textos de sanitaristas e de educadores, dos Códigos de Menores, dos jornais anarquistas, dos censos do IBGE, etc.

O que restou da voz dos pequenos? O desenho das fardas com que lutaram contra o inimigo, carregando pólvora para as canhoneiras brasileiras, na Guerra do Paraguai; as fotografias tiradas por um “photographo” como Christiano Jr., que os capturou nas costas de suas mães, envoltos em panos da Costa, ajudando-as com seus tabuleiros de frutas, aprendendo a jogar capoeira, as fugas da Febem. Não há, contudo, dúvida de que foi, muitas vezes, o “não registrado” mal-estar das crianças frente aos adultos que obrigou os últimos a repensarem suas relações de responsabilidade para com a infância, dando origem à uma nova consciência frente aos pequenos, que, se não é, hoje, generalizada, já mobiliza grandes parcelas da população brasileira.

Resgatar esse passado significa, primeiramente, dar voz aos documentos históricos, perquirindo-os nas suas menores marcas, exumando-os nas suas informações mais concretas ou mais modestas, iluminando as lembranças mais apagadas. É pela voz de médicos, professores, padres, educadores, legisladores que obtemos informações sobre a infância no passado; essa fala obriga, contudo, o historiador a uma crítica e a uma interpretação de como o adulto retrata o estereótipo da criança ideal, aquela saudável, obediente, sem vícios, a criança que é uma promessa de virtudes. Mas, face a essas vozes adultas, é preciso colocar-se algumas questões: será que, numa sociedade historicamente pobre e vincada tanto pela mestiçagem quanto pela mobilidade social, conseguimos construir tal modelo de criança? Médicos e legisladores do início do século acreditavam que sim. Eis por que acabaram por criar, a fim de transformá-la, instituições de confinamento onde, ao invés de encontrar mecanismos de integração, a criança “não ideal” achou os estigmas definitivos de sua exclusão. Ela passou de “menor da rua” para “menor de rua”, com todas as conseqüências nefastas implícitas nesse rótulo.

Assim, os cuidados com o corpo, a alimentação, o brinquedo, as formas de religiosidade, os laços familiares se constituem em grandes linhas de pesquisa que atravessariam, de um lado a outro, a sociedade brasileira, guardadas, certamente, as proporções e as especificidades dos diferentes grupos raciais, sociais e regionais. Através de temas presentes na memória e na recordação, associados à coleta de documentos capazes de nos aproximar da vida da criança no passado, podemos tentar reconstituir o seu cotidiano. Da técnica de pré-digestão de alimentos, embebidos na saliva dos adultos, à tradição da culinária africana, do pirão de leite com farinha seca e açúcar bruto; das brincadeiras entre os pés de cana e de café, a chupar fruta sob as árvores; do simbolismo dos ritos de batismo, primeiro entre escravos e livres, aos atuais “ungimentos” ou batismos em casa; também de outros simbolismos, aqueles em torno dos enterros: os nas biqueiras da casa, para criança pagã, ou o cortejo dos anjos carregando pequenos caixões ataviados de papel prateado até as fotografias dos mortos nos colos de sua mães; dos banhos de rio, no Recife, aos banhos de mar, no Rio de Janeiro; de um mundo entrelaçado ao dos adultos e aos familiares, onde desfilavam os rostos dos avós, de tios e primos, de vizinhos e onde o levar e trazer recados, bem como a conversa, eram, nas recordações de um memorialista, “imprescindíveis como a água, a farinha e o amor”.

Por fim, parece-nos evidente que querer conhecer mais sobre a trajetória histórica dos comportamentos, das formas de ser e de pensar em relação às nossas crianças negras é também uma forma de amá-las, todas e indistintamente, melhor.

Fonte:
BBC/ http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=523/ONU


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